A urna ASMR e outros gêneros da Justiça Eleitoral [Gênero e Dramaturgia]
Em que aprendemos a ler e enxergar o potencial criativo dos gêneros.
A Justiça Eleitoral produziu recentemente uma série de vídeos usando o gênero do ASMR para conscientizar o eleitor brasileiro a respeito do voto e instruí-lo sobre o funcionamento e a operação da urna eletrônica.
ASMR, para quem não sabe, refere-se a uma sensação de formigamento na região do couro cabeludo ou pescoço, uma espécie de sinestesia auditiva-tátil. O termo, sigla para “Resposta Sensorial Autônoma do Meridiano”, também se refere ao gênero de vídeos e áudios produzidos com o fim de incitar essa sensação.
Nos comentários do vídeo acima, usuários descrevem a produção da Justiça como ‘criativa’, ‘genial’, de ‘inteligência ímpar’ e ‘uma das coisas mais estranhas que eu vi na minha vida’.
Na mídia e nas artes, as combinações inusitadas entre conteúdo e gênero são tipicamente percebidas como ‘criativas’, sendo a originalidade da combinação e a elaboração dela fatores decisivos para gerar essa percepção.1 Enquanto a originalidade diz respeito à distância estatística da combinação (eleições e ASMR são conceitos afastados, que não costumam aparecer juntos), a elaboração diz respeito à coesão ou desenvoltura do arranjo (eleições e ASMR se encaixam com conforto no vídeo, sendo o tema efetivamente veiculado e o gênero reproduzido com êxito).
A genialidade e a inteligência também observadas pelos usuários nos comentários do vídeo podem se equivaler semanticamente à criatividade. Já a estranheza percebida por outro usuário revela um aspecto diferente da mistura entre o tema eleições e o gênero ASMR. Esse aspecto, na estilística, é chamado de desvio.
Promovendo uma combinação inusitada entre gênero e tema, os produtores do vídeo desviam ambos. O desvio ocorre quando uma expectativa (externa, pré-texto, ou interna, intra-texto) é quebrada. Antes de assistirmos a um vídeo publicado pelo canal da Justiça Eleitoral e intitulado Por que votar?, não esperamos (exceto se notarmos que o título traz a sigla ASMR entre parênteses) que este gênero será usado para responder à questão-título; tampouco esperamos encontrar, entre os vídeos classificados como ASMR, um que exiba instruções sobre a urna eletrônica e o voto. O desvio coloca a combinação entre eleições e ASMR em relevo, desfamiliarizando ambos — isto é, gerando estranhamento.
Mas o que isso tudo tem a ver com dramaturgia?
Tem a ver que a dramaturgia é uma arte especialmente fértil para o uso e o desvio de gêneros. O pesquisador e professor de teatro Paul C. Castagno, autor de New Playwriting Strategies: Language and Media in the 21st Century, foi quem me influenciou a notar a ubiquidade dos gêneros, denominados por ele de gêneros discursivos, conceito emprestado de Mikhail Bakhtin (1895 — 1975). Castagno define gêneros discursivos como
[…] uma linguagem codificada que remete a um determinado grupo, ocupação, gênero literário, viés cultural e outros. […] Podem incluir discursos, dialetos, expressões idiomáticas e gírias; em seu uso cotidiano, funciona tipicamente como um atalho linguístico. Por essa razão, gêneros discursivos fornecem uma valiosa opção linguística para dramaturgas que procuram estabelecer contexto de modo rápido, evitando diálogos longamente expositivos.
Mas enquanto Castagno enfatiza a dimensão linguística do gênero, eu procuro enfatizar a multidimensionalidade do conceito. As características genéricas do ASMR, por exemplo, localizam-se muito mais na entonação da voz e na ação de alisar, esfregar, tamborilar e usar um objeto do que em seu conteúdo verbal per se. Além disso, enquanto Castagno destaca a função genérica de estabelecer contexto de modo rápido, eu destaco a capacidade do gênero para desestabilizar contextos familiares, promovendo relevo, estranhamento e abrindo margens interpretativas.
A margem interpretativa do vídeo Por que votar? me permite inferir, por exemplo, que um assunto sério como as eleições só pode ser realmente levado a sério pelo eleitor brasileiro se embalado por um método de apresentação (o ASMR) que atraia não por sua mensagem de conscientização, mas por sua capacidade de criar frisson, um estímulo involuntário e gostoso que não exige da consciência o mesmo esforço exigido para se votar criticamente. O discurso do vídeo, nessa chave, parece otimista que a mensagem insemine o espectador que chega apenas pela curiosidade ou pela sensação. Não que essa interpretação seja compartilhada pelos autores do vídeo. Provavelmente não é. Mas a margem está escancaradamente aberta para essa leitura.
O gênero, tipicamente, tem o poder de enquadrar um assunto, semelhante a como a câmera fotográfica ou cinematográfica enquadra um objeto.
Um enquadramento, inevitavelmente, salienta essa ou aquela leitura, ativando essa ou aquela deixa interpretativa, promovendo esse ou aquele efeito de verdade. Diferente seria se o mesmo conjunto temático em questão (voto, eleições, urna eletrônica) fosse trabalhado por outros gêneros que não o ASMR. Sobre isso, veja outra produção da Justiça Eleitoral:
Neste vídeo, o gênero utilizado é o do anúncio publicitário. Não que, por definição, a produção envolvendo o ASMR não seja um anúncio. Ela é. Mas neste vídeo, os atributos do anúncio publicitário são salientados. A urna eletrônica, nova e antiga, é enquadrada como um produto e o vídeo se esforça para ‘vendê-la’. Veja algumas táticas publicitárias empregadas pelo texto:
Tradição (eu sou a urna eletrônica que o Brasil conhece há 26 anos)
Novidade (eu sou o novo modelo de urna eletrônica)
Promessa (garantir eleições transparentes e seguras)
Credibilidade (em nós duas, a confiança já vem de fábrica e é atestada por universidades)
Tradição, novidade, promessa e credibilidade: todas táticas de apelo e persuasão. No clima em que vivemos, de ataque às urnas, é preciso que a publicidade venha ao resgate da eleição e que a urna seja ‘vendida’, como se estivesse perdendo espaço no mercado, como se meios de eleição alternativos (o voto de papel) ou autoritários concorressem para derrubar a liderança da ‘marca’ urna eletrônica. É claro que essa leitura é reforçada pelo conhecimento que tenho de contexto, anterior e exterior ao vídeo. Mas o gênero empregado evoca esse contexto; o do ASMR não.
Eis outro vídeo da Justiça Eleitoral:
A presença da professora Djamila Ribeiro e o cenário escolar remetem a uma aula. É, na prática, uma aula sobre a urna eletrônica. Mas o texto se organiza no formato de listicle: um artigo estruturado em lista, típico de blogs e sites como o BuzzFeed. Aspectos de ambos gêneros (aula e listicle) são misturados no vídeo, demonstrando que o fenômeno do gênero não é puro. Dois ou mais gêneros podem co-ocorrer numa mesma produção.
E qual é a leitura sugerida?
De um lado, a aula sugere que a segurança, checagem e transparência da urna são matérias de escola, questões educativas; do outro, o listicle confere ao tema certa leveza e facilidade, demonstrando que a verdade sobre as urnas é tão acessível quanto ler um artigo em lista do BuzzFeed (e, consequentemente, que duvidar dessa verdade é uma atitude de ignorância ativa).
Por fim, confira este outro vídeo da Justiça Eleitoral:
O gênero do ‘como funciona’ não exibe uma estrutura estável como o listicle, um cenário clássico como a aula, uma retórica específica como o anúncio publicitário, nem mesmo marcas performáticas como o ASMR. É um gênero que se define, praticamente, por sua premissa: mostrar como algo funciona. Muitas vezes, contudo, esse mostrar envolve o desmonte e a exposição das entranhas mecânicas de um objeto. Envolve o uso de uma linguagem mais técnica, específica, e aposta na curiosidade prévia de quem quer ver por dentro algo que normalmente só se vê por fora.
É interessante como, levando em conta (novamente) o contexto de ataque às urnas, o gênero do ‘como funciona’, envolvendo a ação de desmontar o objeto, manda um recado irônico: sim, é possível abri-la e desmontá-la, mas é impossível — como reitera o técnico no vídeo — invadi-la. A violação da urna é justamente para atestar a sua qualidade inviolável.
Dos quatro vídeos da Justiça Eleitoral, o que usa o gênero do ASMR é certamente o mais criativo, divertido e interessante de se ver. É o único que promove desvio e que coloca forma e conteúdo em relevos. Mas todos os outros vídeos exibem traços de gênero. E cada gênero salienta certas leituras e evoca, mais ou menos diretamente, certo contexto.
Na dramaturgia, compor com gêneros abre inúmeras possibilidades criativas: um gênero performativo como a aula, por exemplo, é uma cena ready-made, com cenário, personagens, ações e linguagens prontas. A aula enquadra um assunto, fornece metáforas, bem como se dispõe para ser desviada e desfamiliarizada, abrindo espaço para a originalidade. Assim também com todos os outros gêneros — performativos, textuais, audiovisuais etc. — que podem ser transplantados para o teatro.
O tema gênero renderá mais publicações. Por ora, espero que este artigo seja um primeiro passo na direção de uma escuta e uma atenção mais dilatadas para com as ocorrências de gêneros e o potencial deles para a dramaturgia. E claro:
13 e confirma.
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Originalidade e elaboração são, por sinal, critérios do Teste de Usos Alternativos, empregado por pesquisadores a fim de medir a criatividade de uma pessoa. Outros critérios do teste são a fluência e a flexibilidade. O teste envolve a listagem de usos de um objeto qualquer. Quanto mais usos listados (fluência), quanto mais usos listados que pertencem a categorias distintas (flexibilidade), quanto maior a raridade dos usos (originalidade) e quanto mais eficiente a explicação dos usos (elaboração), mais ‘pontos de criatividade’ a pessoa recebe.